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Dormindo a noite acordado

16-06-2011 18:34

 
Não consigo dormir. Quero dizer, a sério, não consigo adormecer. Acho que já não sei como se faz. Essa coisa que todos vocês fazem parecer tão terrivelmente fácil, aquela cena da cabeça na almofada que todos vocês dominam, todo o processo das pálpebras a ficarem pesadas, não percebo. Eu travo na parte do bocejar. Travões a fundo, ABS, dali não passo. Descobri o segredo do bocejo, sou bastante bom no bocejo, mas não descobri ainda o segredo de uma boa noite de sono. A minha mente nunca tira uma pausa, recusa-se a parar de trabalhar, vagueia por sítios solitários e barulhentos e continua a correr, e não tem um botão de snooze que me parece dar muito jeito nestas situações. Estou sempre acordado, sempre alerta, e já nem os soporíferos funcionam. Não tão bem quanto costumavam. É tão injusto que eu tenha de tomar comprimidos para dormir quando um amigo meu consegue o impressionante feito de adormecer ao volante sempre que pára num sinal vermelho. Ele arrisca-se a ser desmascarado como o narcoléptico que é, e depois de dezassete anos de insónia, nem acho que essa doença seja necessariamente uma coisa má.

Portanto, não durmo facilmente. É uma guerra, todas as noites, que eu tenho de travar e que não ganho, nem de perto nem de longe, vezes suficientes. Sem os comprimidos, é para esquecer, posso muito bem continuar acordado indefinidamente, retro-tsé-tsé, até desafiava o coelhinho das pilhas para um duelo de endurance.

Esta noite, tomei um Stilnox por volta da uma da manhã e fui-me deitar nos meus calções velhos e t-shirt da imobiliária em fase de decomposição avançada, tentando não pensar em adormecer. Dizem que ajuda se não pensarmos nisso. Por volta das duas da manhã, já estava a pensar nisso, a meio caminho do estágio da frustração e a resvalar perigosamente para a irritação. Por isso, tomei outro Stilnox, e esperei pela parte boa. A boa não veio. São agora quatro horas da manhã, e nada aconteceu. O que quer dizer que, com dois comprimidos no bucho, estou naquele limbo entre o completamente alerta e o meio alucinado. E é nessas alturas que a minha cabeça atira os foguetes todos, esgotando o paiol, pensamentos começam a disparar em todas as direcções, para todo o lado, às vezes miraculosamente evitando colidir uns com os outros, jogando à apanhada na maior parte das vezes, sem nenhum sentido de ligação entre eles, aparecendo sem razão nenhuma, tornando as coisas mais difíceis.

Algumas noites, eu simplesmente desisto, dizendo para a escuridão do quarto precisamente isso, “desisto, vamos a ver o que sai daqui”, e começo a seguir os pensamentos à deriva, mesmo havendo tantos deles, mesmo que nenhum encaixe noutro. É o que eu chamo de Sonhos Remix, onde eu tenho uma mesa de mistura com várias pistas em andamento, e eu tento concentrar-me apenas numa para ver onde vai, tentando perceber porquê. Então, geralmente ajusto a almofada, sento-me na cama, pego no meu bloco de notas e numa caneta de feltro verde e faço por escrever tantos pensamentos quantos consigo agarrar a tempo. É uma tarefa complicada, porque eles não ficam à espera que os apanhe. Sacanas escorregadios. Esperneiam e berram obscenidades na minha direcção, e voltam a escapar-se. Mas sempre que apanho um destes pensamentos erráticos alimentados a insónia e induzidos pela engenharia onírica do Stilnox, tento anotá-los nos cadernos. Não digo que seja a regra, apenas que é o que eu faço quando o pensamento selvagem me parece suficientemente bom para passar para o papel e a caça ao sono já é uma causa perdida.

Agora, a minha caligrafia é simplesmente terrível. Começou a degenerar quando estava na terceira classe, e quando finalmente cheguei ao oitavo ano, aquilo já começava a parecer-se com hieróglifos egípcios. Não me impressiona por aí além a integridade de cada maldita letrinha. Gosto mais de brincar com as suas fronteiras e vergá-las até que se torne totalmente impossível a alguém ler aquilo que escrevo. É excelente se formos daqueles que gostam de escrever num diário mas que não querem que ninguém leia o que lá vão registando. Mas é muito menos prático quando eu próprio não consigo perceber o que escrevi. O que me acontece muito. E acontece com uma frequência ainda maior no que toca aos meus cadernos dos pensamentos tresmalhados. A Escrita Nocturna apanha por tabela, sendo mesmo abastecida pela minha pior caligrafia. Estou cansado, é tarde, estou pedrado e não sei o que penso, tentando tirar algum sentido daquilo, escrevendo curvado na cama.

Isto quer dizer que tenho uma pilha de cadernos e blocos de notas preenchidos a feltro verde, escritos em rabiscos crípticos plenos de, tenho a certeza, fantásticas ideias e conceitos, grandes noções literárias que não consigo decifrar porque, convenhamos, ninguém consegue compreender a minha letra. Pronto, nem tudo é assim. Muito do que está escrito é legível, embora apenas aos meus olhos. Consigo ver onde uma letra se funde às três seguintes porque percebo a natureza não-linear da minha cronologia caligráfica. Mas existe um sistema, e só eu sei o código. Infelizmente, às vezes o sistema falha e fico tão perdido quanto qualquer outra pessoa. E é sobre isso que estou a pensar esta noite. Quer dizer, isso e muitas outras coisas também, as outras pistas de pensamento estão a fluir tão desvairadamente quanto esta que eu agarrei, mas eu tento concentrar-me nesta e tento pôr todas as outras em modo mute. Mais sobre elas mais tarde. Talvez. Se se demorarem por aqui tempo suficiente.

E estou a pensar na minha letra, e em todos os meus cadernos, e na possibilidade de poder haver algum bom material neles, algo que me escape porque já não sei o que lá está escrito. Estou a pensar que a minha má caligrafia tem andado estes anos todos a sabotar as minhas hipóteses de atingir o estatuto de estrela do circuito literário, pelo menos a um nível imaginário, onde wannabes se tornam realmente naquilo que desejam ser, sem a parte aborrecida de sequer tentarem. A minha letra codificada, milhões de gatafunhos em milhares de páginas, tudo perdido para o mundo. Por isso, pensei, talvez um dia, quando eu estiver morto, enterrado e há muito esquecido, alguém depare com os meus cadernos e, por alguma razão, se deixe fascinar pela sua estética obscura e tente encontrar o sentido de tudo aquilo. E imagino assim um homem, já velhote, cabelo quase completamente branco e omisso aqui e ali em certas partes do crânio, corpo em arco sobre os meus escritos, irrevogavelmente absorto nos seus mistérios.

Parto do princípio que este homem seja um perito em caligrafia, e que dedicou a maior parte da última década da sua vida tentando decifrar as minhas palavras, ao ponto de se tornar numa obsessão e espantar todas as outras facetas do dia-a-dia. Família e amigos, primeiro tentaram trazê-lo de volta, resgatá-lo aos rabiscos verdes de ponta de feltro e fazê-lo regressar ao que realmente importava na vida dele, mas mais tarde desistindo, abrindo mão do velho, permitindo-lhe que lentamente fosse engolido pela espiral descendente na qual parecia ter embarcado de livre e espontânea vontade. Por alguma razão, este idoso teimou em estudar as minhas notas trancando qualquer outro aspecto da sua existência, esquecendo todo o seu passado e mal se dando conta de que a família tinha ido embora, os amigos o haviam abandonado, ninguém o vinha visitar e nenhum correio fora recebido em muito, muito tempo.

Apenas os meus cadernos o interessavam, eternamente tentando descodificá-los, quase um pensamento único percorrendo o cérebro dele. Não toma banho, as roupas que veste são as mesmas há já bastante tempo, adquirindo aquela configuração desconjuntada, e eu não consigo realmente ter acesso ao olfacto na minha fantasia, mas aposto que por esta altura já começam a feder. Ele dedilha pelas páginas, em busca de um propósito nelas, como se suspeitasse que haveria coisas importantes ali escondias, à espera de serem descobertas, como se fossem um continente perdido, ou a cura para a solidão ou a maneira mais fácil de se ganhar a lotaria ou algo nesse género.

Um cão entra de fininho na vida imaginária deste ancião, assim de repente, pois essa é a natureza do processo dos meus pensamentos nocturnos. Faz sentido que este homem tenha um cão, o seu único amigo, que teimosamente se deixou ficar para trás quando todas as outras coisas e pessoas há muito haviam partido. Este cão não tem nome, é só um cão, deitado no sofá à esquerda do velhote, os seus grandes olhos castanhos fixos na televisão que mostra reposições do Mr. Ed, ou algo parecido. Enquanto o dono dele continua sentado à mesma escrivaninha à qual tem estado sentado desde sempre, ou assim parece, os meus cadernos espalhados em todo o seu comprimento, alguns abertos, outros demarcados com folhas de papel, outros virados ao contrário, como se ele tentasse lê-los todos ao mesmo tempo, como se isso ajudasse. E isto arrasta-se para sempre, e a vida consome-se imparável.

Na minha fantasia, quem me dera poder dizer que o velho de cabelo branco eventualmente consegue desenterrar os segredos da minha letra. Mas não vejo isso acontecer. O que vejo é o velhote no fim, a desmoronar-se sobre a escrivaninha, tombando o corpo sobre os blocos de notas aos quais ele sacrificara aqueles últimos anos miseráveis, sem ficar a saber mais sobre eles no momento da morte do que aquilo que sabia quando se iniciara naquela demanda, tanto tempo atrás. É tudo em vão, quando ele morre, de algo que vem sem aviso ou explicação, e os vizinhos não dão por nada durante dias, até que decidem finalmente estar fartos do ladrar e do ganir do cão do andar de baixo.

É assim que a minha fantasia acaba, é onde este pensamento me leva, e não me ajuda em nada a encontrar o sono. E agora que já terminei de escrever, o temido primeiro clarão do novo dia nasce através das janelas do meu quarto, fazendo-me sentir como das outras vezes, como se estivesse numa prisão. E à medida que começo a pensar o quão desesperado me sinto geralmente quando a aurora rasga a escuridão solitária que já me habituou servir-me de companhia, tento encontrar um final alternativo para esta história parva. Mas não passo para o papel este final, não o junto ao resto do texto. É apenas um cenário do que aconteceria se.

E se, ao menos uma vez, o velhote acertasse? Quem me dera que na minha fantasia este velho entendido na caligrafia, por uma vez, subitamente arqueasse a sua sobrancelha felpuda e fizesse algum tipo de barulhinho, talvez um assobio ou um suspiro ou uma coisa qualquer. Os seus olhos finalmente limpos e lúcidos, o rosto novamente jovem e a coluna dolorosamente endireitada pela primeira vez em muito tempo. E o cão dele notaria a súbita mudança de linguagem corporal no seu dono. O cão espigaria a cabeça e apontava a sua orelha boa para escutar o que estava por vir, observando o dono com um nervoso miudinho de antecipação. O velho das roupas velhas e do cabelo banco olharia para o cão, o seu único amigo no mundo inteiro, batendo numa das páginas com a unha suja de um dos dedos da mão esquerda e, numa voz rouca e hesitante, diria

“Sabes… eu acho que ele estava um pouco triste quando escreveu isto…”
 

Nuno Lopes, RVCC Nível Secundário, Grupo 19
 

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