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Dois textos de Carlos Martins
03-05-2012 17:031.
Gosto de parar para almoçar na aldeia de Fajão (Pampilhosa da Serra), sede de freguesia e outrora sede de concelho e, de vez em quando, ouvir os seus residentes mais velhos contarem os famosos Contos de Fajão, recolhidos e publicados em 1989 por Monsenhor Nunes Pereira. Muitos deles remontam à Idade Média, foram transmitidos de geração em geração e têm a personagem do Juiz de Fajão por protagonista. Transcrevo um desses contos:
O CHEIRO DO CHOURIÇO
Em certa ocasião um sujeito chegou a uma taberna para comer alguma coisa.
Mandou vir pão, uns ovos, um bocado de queijo e uma caneca de vinho.
Enquanto estava a comer viu um chouriço pendurado e disse assim: Bonito chouriço! E cheira bem!
Quando acabou de comer perguntou quanto devia, e o vendeiro apresentou-lhe a conta: tanto de pão, tanto dos ovos, tanto do queijo, tanto do chouriço, tanto do vinho, soma tanto.
- Alto, diz o freguês. Eu não comi chouriço!
- Não o comeu, mas cheirou-o!
- Embora, que não pago, só se for em tribunal.
Foram para o tribunal, que era em Fajão, e o juiz de Fajão, depois de ouvir o queixoso a dizer que tinha a receber tanto pelo cheiro do chouriço, perguntou ao réu:
O senhor tinha o dinheiro para pagar a importância do chouriço?
- Tinha, sim, Senhor Doutor Juiz.
- Ponha aqui o dinheiro que aquele senhor pede pelo chouriço.
Ele meteu as moedas dentro de uma bolsinha e entregou-a ao Juiz.
Então o Juiz de Fajão pegou na bolsa, fez tilintar as moedas e perguntou ao taberneiro: O senhor está ouvindo?
- Estou, sim, Senhor Doutor Juiz.
- Então contente-se com ouvir, que o réu também se contentou com o cheiro.
A história da aldeia de Fajão já é muito antiga, segundo informação recolhida no site “Aldeias de Xisto“ (https://www.aldeiasdoxisto.pt/passeioaldeia/3/5/100/111/116/594):
“Em 1233, o Prior do mosteiro de S. Pedro de Folques, D. Pedro Mendes, concedeu Foral a ‘dez Povoadores de Seira, que depois se chamou Fajão’, no contexto da política que visava criar comunidades de homens livres que garantissem o povoamento do território cristão. Com este diploma, Fajão adquire o estatuto de concelho que viria a ser demarcado em Fevereiro de 1602, pagando renda àquele mosteiro. No entanto, em 1916, por Breve do Papa Paulo V, os bens dos Mosteiros de Folques e Paderne são anexos ao Colégio da Sapiência de Santa Cruz de Coimbra.
O Senhor de Fajão deixa de ser Folques para passar a ser Santa Cruz, o que lhe permitia gozar de privilégios e isenções concedidas pelos reis ao Mosteiro de Santa Cruz. Para os fazer valer, os moradores de Fajão tiveram porém de protestar e uma dessas reclamações fez de Pascoal Fernandes, que a encabeçou, figura relevante nos célebres ‘Contos de Fajão’.”
Depois deste pequeno encontro com a história, duma aldeia do concelho de Pampilhosa da Serra, vão-me questionar sobre o meu interesse pela história e cultura local. Esta minha curiosidade vem desde a minha adolescência, em que comecei a ouvir mais atentamente os meus avós e tia materna, que gostavam de me contar as vidas dos antepassados daquela freguesia, que já tinha sido concelho. Assim pouco a pouco, comecei a ter interesse pela história e cultura, de toda aquela região. Foi desta maneira que começou o “bichinho” de saber como nasceu este nosso país, para aprender um pouco mais acerca da nossa tão variada cultura, que tanto nos enriquece na nossa auto-estima.
2.
Quando se é emigrante, dominar a língua de acolhimento torna-se uma necessidade fundamental. Vou dar o exemplo do meu avô materno, que emigrou para França nos finais dos anos 30 do século passado. Embora não houvesse na altura grande emigração para esse país, devido à Segunda Guerra Mundial, ele arriscou, contando que foi para uma pequena cidade chamada Besançon, junto à fronteira com a Suíça, onde não conhecia portugueses. A única maneira de se integrar naquela comunidade foi começar a comprar jornais em língua francesa, tentando aprender com os colegas franceses.
Com alguma dificuldade, conseguiu aprender a língua, tanto na forma escrita como na forma oral, e lembro-me de que ele falava um francês correcto. Também aprendeu algumas palavras de alemão, devido a essa pequena cidade também na altura estar ocupada pelo exército alemão. Nas suas palavras, esse período foi muito sofrido, com a ocupação feita pelos alemães, vivendo um dia de cada vez, não sabendo se no dia seguinte estaria vivo.
O meu avô tinha espírito de aventura, porque só assim conseguiu ir para França nos anos 30, “a salto”, expressão muito utilizada pelos nossos emigrantes. Este “bichinho” já estava entranhado na minha família materna, dado também o irmão mais velho do meu avô ter emigrado nessa altura para os Estados Unidos.
Como queria o melhor para a mulher e filhos e era uma pessoa aventurosa e individualista, o meu avô mais um grupo de aventureiros arriscou, mal eles sabiam que dali a pouco estava a arrebentar a Segunda Guerra Mundial.
Durante os primeiros anos, a minha avó ainda recebeu cartas censuradas, não sei se pela PIDE ou pelos Alemães, mas nos últimos anos deixou de receber qualquer notícia: os meus familiares não sabiam se o meu avô estava vivo ou morto.
Terminou a guerra, e a minha avó lá recebeu uma carta enviada pelo meu avô. Saberem que ele estava vivo foi uma alegria imensa. Nessa carta, dizia para a minha avó ir para França e levar a minha mãe e o meu tio, mas ela não aceitou esse risco, por ter receio do que poderia acontecer, vendo o que ele passara. E assim, com bastante pena, o meu avô regressou a Portugal, dado não querer abandonar a mulher e os filhos. Apesar de tudo, esta experiência de vida foi muito enriquecedora para o meu avô.
A mim, nunca ele me contou os pormenores desta aventura, dado ser um pouco reservado e achar que eu era muito novo para saber o que tinha ocorrido. A maior parte das histórias da vida dele, soube-as pela minha mãe. Mas o interessante de tudo isto é que o meu avô que foi para França e o meu tio que foi para os Estados Unidos regressaram ambos a Portugal. Embora tivessem os dois espíritos de aventura e fossem os dois individualistas, moveu-os, no regresso, a saudade das mulheres e dos filhos que cá tinham deixado.
Carlos Martins, RVCC de nível secundário.
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